Após todos estes anos, a subtil marca na mesa de madeira
provocada pelo pousar caneca dela, continua lá. A vassoura continua atrás da porta,
onde ela religiosamente a guardava após varrer a cozinha passando pelo mesmo
canto vezes sem conta. Os sofás mais simples do mundo, os de cá de casa, passam
a impressão de que foram usados recentemente, por ela. A manta preferida dela,
bege e incrivelmente macia, permanece intacta tal como ela a deixou: semi-dobrada a um canto do sofá. Esta manta era especial, tinha mais anos de vida do
que o nosso gato de estimação, já para não falar de que o seu padrão de cores
vivas lhe trazia a própria vida. Pensavam as pessoas que eram as suas cores
vivas que lhe traziam vida… Mal sabiam elas que quem a possuía era a mulher que
trazia vida ao mundo. Bom, pelo menos ao meu mundo. E claro, também à sua manta
preferida.
Os porta-retratos continuam intactos, com uma ligeira camada
de pó sobre eles. As nossas caras de felicidade em todas as fotografias, não me
parecem tão felizes como antes, embora os momentos que representam sejam os
momentos de mais pura felicidade que senti, que sentimos. Nem sempre as
máquinas de hoje em dia conseguem captar a verdadeira essência dos momentos,
mas com ela tudo era tão perfeitamente imperfeito que até as fotografias
transbordavam de felicidade. Julgo que quem lhes tocar hoje em dia ainda
consegue sentir a boa energia que elas emanam. Eu já não consigo, ou será que
consigo? A verdade é que as boas memórias me trazem muita dor, isto porque me
lembram da falta que ela me faz. Como se não fosse suficientemente doloroso
acordar todos os dias para um mundo em que ela não está presente, como se as
saudades não me inundassem alma cheia de fissuras, como se cada objecto desta
casa cheia de memórias não me lembrasse que, em tempos, fui o homem mais feliz
do mundo.
Hoje em dia não o sou, não o sou de todo. O homem mais
sortudo do mundo, esse sim serei sempre eu, porque, devido a qualquer força
desde mundo ou do outro, me foi proporcionado amá-la como nunca nenhum homem
amou outra mulher, e me foi proporcionado ser amado como acho que mais ninguém
seria capaz de amar. É-me impossível falar em qualquer outra mulher, eu
rejeitaria todas para ficar com ela, e se o meu destino não fosse tê-la, então
preferiria ficar sozinho. Mas ela foi minha, como nunca outra mulher foi de
outro homem, e é por isso que sei, que tenho a certeza, que outrora fui o homem
mais feliz do mundo.
Mais do que a disposição dos objectos, os sofás ou as
fotografias, aquilo que não mudou verdadeiramente foi o seu perfume. O cheiro
dela paira no ar. Este, assemelha-se ao cheiro das mais belas rosas no seu auge,
assemelha-se a paisagens que transbordam ar fresco, ao clima da mais bela
montanha, ao corrimento das águas mais calmas de um rio… Subtis, mas sem esquecer
o seu percurso natural, sem esquecer o seu propósito. Era assim o seu perfume.
Transbordava caos e liberdade, ar fresco do campo e adrenalina da cidade, o
doce que ela era sem deixar de lado a sua personalidade forte.
É o que verdadeiramente dá cabo de mim, não consigo viver sem
saber, sem imaginar, que o seu perfume ainda paira no ambiente desta casa tão
cheia dela, e mesmo assim tão vazia. Mas que ao mesmo tempo me mata, toda
esta presença de memórias e indicadores de que fui feliz, e de que não o sou mais.
Porque ela não está aqui. O que me mata são estas memórias, estes cheiros, a
disposição dos objetos, o relembrar a rotina que tínhamos, o relembrar do
quanto fui feliz com ela, o relembrar do quanto a fiz feliz, mas principalmente o
relembrar do quanto ela fez a minha vida valer a pena.
Como se a "simples" falta dela não me matasse todos os dias.
Depois dela, nada mudou.
Desde que
ela partiu, nada mudou.
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